O que significa aceitar as pessoas como são?
José Carlos      (07/Set/18)

A questão de "aceitar ou não as pessoas como elas são" é muito mais complexa do que parece.

Podemos perguntar, por exemplo:

1) Quando dizemos "as pessoas como elas são" significa que elas "são" mesmo, ou apenas "estão"?

2) Há uma separação entre a pessoa e as ideias que ela defende, os valores que tem ou as paixões identificadas ao seu eu? Em outras palavras, o mundo mental da pessoa é a pessoa?

3) Existe algo à parte do mundo mental e, caso exista, o que é em última instância?

4) Uma lagarta é apenas uma lagarta ou traz em si a transcendência dessa condição?


O que podemos dizer é que, na base de nossos sentimentos e juízos sobre aquilo que nos cerca (como pessoas, comportamentos e fatos da experiência cotidiana), está nosso íntimo desejo de estar bem interiormente, isto é, sem perturbações emocionais. Somos programados para procurar o estado de bem estar interior através de nossas escolhas, palavras e atos, e esse desejo é o fator determinante de nossa aceitação ou não de algo.

Essa programação, no entanto, é em si mesma uma fonte de tensão (impõe ao nosso eu a responsabilidade de fazer as escolhas certas), pois as condições do mundo são desequilibradas, inseguras e muito pouco previsíveis.

E onde estão os objetos, pessoas e situações que desejamos?

Nesse mesmo mundo — instáveis, complicadas de se conseguir, raramente nos recompensando como pensávamos e muitas vezes nos decepcionando como não pensávamos. Acresce que, inúmeras vezes, nosso próprio comportamento é inadequado, nossas palavras sem sabedoria e nossas ideias de limitada inteligência.

Assim é que temos que conviver, ao longo da experiência terrena, com os mesmos sentimentos que queremos evitar — remorso, mágoa, raiva, culpa, tristeza, remorso, ansiedade, e outros semelhantes — sendo o nosso inato desejo de felicidade raramente alcançado, o que gera um estado de constante insatisfação.

E é nesse contexto emocional que nos defrontamos com coisas, fatos e comportamentos que nos desafiam a aceitá-los ou não. Tais eventos, geralmente, são coisas que incomodam, mas que vieram para ficar (às vezes, longo tempo).

Por exemplo: imagine que você vai dirigindo tranquilamente seu carro rumo ao trabalho, e de repente se defronta com um imenso congestionamento, não havendo possibilidade de escolher uma rota mais favorável. Não há o que fazer, a não ser... ter paciência e esperar. Você aceita o engarrafamento? Fica revoltado contra ele, aflito por causa das consequências que o atraso pode gerar?

Nossa primeira atitude, enquanto pessoas, é uma certa aversão e rejeição interior, pois não queremos ser perturbados; não percebemos que a recusa psicológica ao inevitável gera revolta e amargor, e nos faz sofrer ainda mais.

A aceitação do desagradável e do sofrimento, ao contrário, exigirá uma mudança interior, para aprender a conviver com aquilo que contraria, traz consequências, mas necessariamente faz parte de nossa experiência. Isso é amadurecimento; já não se trata de tanto de aceitar isso ou aquilo, mas de entender que "no mundo tereis aflições", ou seja, a existência de contrariedades, problemas e dores é regra e não exceção. E será dentro das adversidades que deveremos descobrir o que é a felicidade que tanto almejamos.

O mundo psicológico está em construção
Não podemos impedir que as tendências latentes, isto é, as sementes psicofísicas que constituem o patrimônio genético de cada um (inclusive o nosso) se manifestem.
Por outro lado, o amanhã é construído não somente a partir do passado, mas também pelo que acontece hoje.
Há inúmeras nuances em que as condições se apresentam.

Por exemplo, se vemos alguém de quem gostamos enveredar por caminhos ruinosos, apresentando comportamentos errôneos, nocivos ou equivocados, não temos o dever de tentar impedir, se estiver a nosso alcance? Sim, pois em muitos casos a situação ainda está indeterminada e talvez possa ser revertida, mesmo que nos pareça impossível. Mostrando nosso sentimento, intenção e cuidado, talvez possamos mudar o curso das coisas ou ao menos influenciá-las de forma positiva.

 


O que é a pessoa?
Tentar mudar (ou corrigir) um comportamento indesejável de alguém é o mesmo que tentar mudar a pessoa? Geralmente, consideramos que a “pessoa” será mais, ou menos afetada, na proporção do trabalho interior exigido; por exemplo, se o comportamento inadequado for apenas fumar em local proibido, um simples pedido resolveria, portanto, isso não configura uma grande “mudança” na pessoa.
Ao contrário, quando se trata da erradicação de um hábito profundamente arraigado ou supressão de um vício, um grande esforço é exigido, levando a uma mudança maior na pessoa.

Mas, afinal, o que é a pessoa, e o que significa dizer que ela “mudou”?
Sucintamente, uma pessoa é uma estrutura psicológica num corpo físico. Essa estrutura é formada por ideias, conhecimentos e condicionamentos diversos, tendências inatas (incluindo os conteúdos inconscientes) e modos de sentir, isto é, quais emoções lhe são mais doloridas ou prazerosas e com que intensidade, tudo sendo conduzido pelo fio do desejo.

Desejo de quê? De felicidade através das experiências, o que é a base da vontade pessoal.
E o aspecto exterior do mundo psicológico de cada qual pessoa se mostra através de seus interesses, paixões, manias, aversões, enfim, por meio de seus comportamentos.

Mas essa descrição omite uma coisa fundamental: a Vontade — que é algo que pensamos que sabemos, mas não sabemos.

Uma pessoa é tudo o que foi dito acima e mais a Vontade que há nela, a qual é tomada, equivocadamente, como vontade pessoal, que é o império dos desejos ligados ao mundo físico e emocional.
Quando chegamos ao mundo, já somos a Vontade original submetida a inúmeras tendências latentes; a vontade pessoal está em estado potencial e se cristalizará de acordo com as experiências que a pessoa tiver no mundo.

Só temos consciência da vontade pessoal — mas essa não é a Vontade original, verdadeira, que é totalmente impessoal, imutável e sempre presente em cada um de nós, porém encontra-se "pessoalizada", isto é, recoberta por paixões, ideias, crenças, sensações e emoções, o que ocasiona o aprisionamento da pessoa e seu direcionamento para os objetos dos desejos.

A vontade pessoal, portanto, é a nossa versão da Vontade original, sobrecarregada das paixões, ambições, apegos e aversões que caracterizam nossos desejos — gerando uma vontade pesada, escravizada, identificada com os níveis mais baixos da mente.

Vimos que, quando um comportamento é mudado numa pessoa, admitimos que ela sofre uma mudança, em grau maior ou menor, dependendo do trabalho interior exigido. Dizemos: fulano mudou, a pessoa mudou. Mas o que é isso que muda? O que muda é a vontade pessoal, que se libertou de algo que lhe estava sobreposto, ou trocou-o por outro — o que não significa transformação; é apenas um movimento de rearranjo de atributos no nível horizontal.

Há uma ação correta num mundo dominado pelas vontades pessoais?
Quando olhamos a sociedade onde vivemos, vemos miséria, corrupção, egoísmo, violência, injustiças, mentiras e desigualdades sociais gritantes: devemos ou não ficar revoltados ao ver um homem desempregado se afundar na bebida ou uma mulher com 5 filhos pedindo esmolas? Ou devemos aceitar o mundo tal como é?

Conheci alguém a quem lhe doía ver a mendicância, e por isso andava sempre com certa quantidade de dinheiro em moedas, dando um pouco a cada um que lhe pedia ajuda. Dizia que se sentia bem assim. Em última instância, portanto, fazia o bem em causa própria, o que parece toldar um pouco a generosidade da ação. Mas esta, olhada em si mesma, seria condenável?

Opiniões podem se dividir a favor ou contra; uns podem dizer que ele está “estimulando a vagabundagem” enquanto que outros podem ver um gesto bondoso aos deserdados da sorte. Por aí vemos como é difícil lidar com os problemas humanos, todos criados pela vontade pessoal.

Ora, Einstein dizia que "nenhum problema pode ser resolvido pelo estado de consciência que o criou".

 



Mas, haverá uma ética, uma visão de mundo que possa nortear nossa vida em sociedade?

Vejamos um belíssimo poema de Reinhold Niebuhr, teólogo norte-americano:

“Senhor, conceda-me a serenidade
para aceitar aquilo que não posso mudar,
a coragem para mudar o que me for possível
e a sabedoria para saber discernir entre as duas.
Vivendo um dia de cada vez,
apreciando um momento de cada vez,
recebendo as dificuldades como um caminho para paz,
aceitando este mundo cheio de pecados como ele é,
assim como fez Jesus, e não como gostaria que ele fosse;
Confiando que o Senhor fará tudo dar certo
se eu me entregar à Sua vontade;
Pois assim poderei ser razoavelmente feliz
nesta vida e supremamente feliz na outra.”
Amém!

O poema traduz o caminho da vontade pessoal à Vontade Primordial (que está na base de cada forma de vida), começando com serenidade para aceitar aquilo que não posso mudar, coragem para mudar o que me for possível e sabedoria para saber discernir entre as duas. Ora, sabemos que serenidade, coragem e sabedoria são atributos que uma pessoa raramente demonstra.
Mas, vejam como começa o poema: "Senhor, conceda-me...".

Isto é, a vontade pessoal, que expressa o desejo de felicidade por meio da experiência do mundo, reconhece-se falha e impossibilitada de levar inteligência e amor ao mundo, e subordina-se à Vontade Primordial para essa finalidade. E o poema prossegue:

"Vivendo um dia de cada vez, apreciando um momento de cada vez..."
Isso é belo, como que reescrevendo o lindo verso "Não andeis ansiosos pelo dia de amanhã...". Não se trata de selecionar apenas os momentos de prazer e alegria para apreciá-los. Obviamente ele está aludindo a um estado de espírito superior à vontade pessoal.

Mas o mais impressionante é:
"recebendo as dificuldades como um caminho para paz, aceitando este mundo cheio de pecados como ele é, assim como fez Jesus, e não como gostaria que ele fosse...”.
Note que “dificuldades” é outra palavra para “sofrimentos”, e “pecados” quer dizer o quê, senão a vontade pessoal, causa das misérias do mundo?

E então vem a chave: "Confiando que o Senhor fará tudo dar certo, se eu me entregar à Sua vontade".
Isto é, o "eu", a pessoa, desfaz-se de seus atributos e entrega-se à Vontade Primordial — e nesse desvestir-se de si mesmo, de sua vontade pessoal, a alma individual trilha o caminho para o "Eu e o Pai somos um".

A última parte do poema, a meu ver, seria até dispensável: "Pois assim poderei ser razoavelmente feliz nesta vida e supremamente feliz na outra", pois, de certo modo, reafirma a pessoa na sua matéria prima que é o tempo e o desejo de receber recompensas.

Portanto, o problema não é apenas "aceitar ou não as pessoas como elas são", mas compreender que todas as situações, eventos agradáveis ou não, problemas e dificuldades também, são manifestação da Vontade Primordial que está em todas os seres humanos, mas obscurecida pelas paixões e vaidades, ambições e vícios da pessoa, que endeusa sua própria vontade, enquanto Jesus dizia: "Eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas sim a vontade dAquele que me enviou".

Enquanto formos pessoas dotadas de vontade própria e nela confiantes, teremos sempre uma visão parcial dos problemas do cotidiano, condicionada por nossas opiniões, sendo que, muitas vezes, somos parte do problema que desejamos solucionar, e nem sabemos disso.

Mas, se a vontade pessoal está consciente de que, em última instância, é ela a criadora de problemas, e se submete à Vontade Primordial, saberá aceitar corretamente as pessoas, fatos, a si mesma e até seu próprio sofrimento, purgando-se de sua pessoalidade e descobrindo a liberdade na Vontade Primordial.


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