Os Problemas decorrentes de localizar a Espiritualidade na Psique
Pe. Bede Griffiths      (25/maio/18)

Diz o entrevistador, Marvin Barrett, por ocasião de seu encontro com Bede Griffiths:

"Apesar de octogenário, ainda viaja por todo o mundo para se encontrar com grupos interessados em explorar os pontos comuns entre a religião oriental e a ocidental, e sua importância crucial uma para a outra. Em casa, está em geral trabalhando em algum livro, seis dos quais já foram publicados – entre eles os clássicos espirituais contemporâneos The Golden String, The Return to the Center e The Marriage of the East and the West (Templegate Publishers, Springfield, Illinois)".

A tradução dessa entrevista concedida a Marvin Barrett e publicada na revista Parábola foi revista e resumida por Bete Torii.

Marvin Barrett: O senhor tem uma definição do que significa o testemunho no contexto religioso?

Padre Bede Griffiths: Na meditação a pessoa tenta acalmar o corpo e os sentidos, acalmar a mente e tornar-se aquilo que é chamado "a testemunha silenciosa", a testemunha além da mente. Nós do Ocidente acreditamos que a mente é tudo, mas toda a prática oriental consiste em ir além da mente, até o ponto da testemunha silenciosa, onde você está testemunhando a si mesmo, onde se está além do ego, além do self. A tradição hindu se fundamenta naquilo que o ocidente em grande parte já perdeu: que há três níveis. Há o nível do corpo e há o nível da mente, que o mundo ocidental pensa que é o fim. Mas além desses está o espírito. é o Atman, o pneuma, segundo S. Paulo, uma outra dimensão para onde vamos além da mente, dos sentidos e dos sentimentos, e onde estamos conscientes da realidade transcendente. E esse é o objetivo da vida, chegar a isso.

MB: Como o senhor vê o desenvolvimento da capacidade de testemunhar validamente? O que está envolvido nisso?

BG: O supremo exemplo disso no hinduísmo é o guru que é visto como capaz de despertar por completo uma pessoa. Mas acho que em quase todos os níveis pode haver compartilhamento – veja, nós influenciamos verdadeiramente a mente da pessoa com quem estamos conversando, e alguém que tenha ido além da mente consegue ajudar outros a irem além da mente.

MB: O guru último é a testemunha dentro de nós.

BG: Sim, mas isso é muito complicado, traiçoeiro. Pode-se atingir um nível bastante profundo de experiência, mas o ego está sempre lá, por trás. Ele sempre pode aparecer de novo, e às vezes você pode não reconhecê-lo. Há alguns gurus que são de fato bastante egoístas. Lembro-me de um guru muito conhecido, que eu respeito, falando que um outro guru era ego da cabeça aos pés.

MB: E quanto à dependência ou independência do testemunho em relação à fé?

BG: Eu vejo a fé como um despertar para a transcendência. Na perspectiva cristã, dizemos que Deus está além da razão, completamente além do mundo criado, e que é necessário abrir o coração e a mente para a transcendência. Em geral o transcendente se manifesta por meio de alguma tradição em particular. Isso parece ser onde as religiões diferem. Se você desperta para a transcendência na tradição budista você a chama Nirvana, e você entra para o Caminho das Oito Vias, e assim por diante. Se você for hindu você a denominará Brahma ou Atman e seguirá o caminho da ioga, e se for cristão a denominará Deus Pai e entrará no caminho de Cristo. Portanto, cada um é um caminho para o Supremo, tendo seu caráter próprio e único.

MB: O que o senhor vê como propósito e função da vida monástica em relação ao testemunho?

BG: Esse despertar pode ocorrer sob quaisquer circunstâncias, e ocorre. Mas, para que ele seja alimentado e cresça, a maioria das pessoas precisa de um tempo de reclusão. E muitos precisam não só de algum tempo, mas de toda a vida. Um monastério ou um ashram é um lugar que existe exatamente para permitir que as pessoas despertem e cresçam em sua consciência da transcendência.

MB: Em um período sensível de seu desenvolvimento.

BG: Sim. E pode ser temporário. No Budismo, particularmente, há o monacato temporário, e muitos de nós sentem que deveria haver o monacato cristão temporário. Mas em nossa tradição, em geral é para a vida toda. é necessário haver centros onde as pessoas possam encontrar essa experiência, e nesse centro é necessário que haja uma ou duas pessoas, pelo menos, que estejam completamente comprometidas com ele. O monge beneditino é uma pessoa que está comprometida com essa busca, a experiência de Deus, e que cria centros onde outros possam encontrar isso.

MB: Com base em sua experiência, obviamente não é fácil estabelecer tal centro.

BG: E atualmente talvez seja mais difícil que nunca, porque a mente racional está assumindo o comando em todos os lugares. A ciência e a tecnologia fazem avanços incríveis, e as pessoas se tornam mais e mais absorvidas por eles. Isso está inteiramente no nível da mente racional, e as pessoas começam a pensar que não há nada além disso. Portanto, torna-se mais difícil agora. E muitas pessoas acham que aqueles que se retiram da atividade da vida são pouco equilibrados ou são escapistas. Mas duas coisas estão acontecendo. Uma é que o antigo sistema da ciência e tecnologia segue em frente, com seus desenvolvimentos maravilhosos, mas a outra é que houve uma ruptura na ciência, em especial na física, e uma abertura para níveis mais profundos de consciência.

O recolhimento iluminador
MB: Isso vem acontecendo há algum tempo.

BG: Isso vem acontecendo há algum tempo e sinto que esse movimento é a esperança para o futuro. Nesse sentido está ficando mais fácil, mas o movimento principal ainda é em direção ao avanço da tecnologia.

MB: O senhor acha que há uma tradição esotérica e outra exotérica do testemunho?

BG: Eu em geral não faço essa distinção tanto quanto algumas pessoas fazem. Particularmente no Cristianismo, sou mais inclinado a pensar que o esotérico existe dentro do exotérico. Não são dois movimentos separados. Muitas pessoas vêem somente a superfície da religião, mas sempre há quem consiga ver a profundidade interna dela. Acho que Agostinho ou São Tomás de Aquino estavam bem no centro da igreja esotérica e, entretanto, permaneciam com o exotérico.

MB: Sempre há, portanto, acesso...

BG: Sim. Sou cristão porque realmente acredito que dentro das igrejas católicas, não importa quão exteriores sejam, o Espírito Santo está sempre presente.

MB: E quanto à relação entre a moralidade e o testemunho?

BG: Isso é bem difícil. Mesmo um nível bem alto de experiência espiritual pode ainda deixar as pessoas sem muito desenvolvimento moral. Na verdade, faço aqui uma distinção entre o psicológico e o espiritual. Quando se entra no mundo da meditação, entra-se no mundo psíquico que está além do físico. Toda a parapsicologia está lá – clarividência, poderes de cura, e assim por diante – e esse mundo é ao mesmo tempo bom e mau. Você consegue passar além dele, para o espiritual, que transcende o psíquico e que é propriamente o mundo e reino do testemunho. Mas todo o vasto mundo psíquico está no meio e as pessoas podem ficar presas nele. E isso pode ser muito mau. Acho que um homem como Rajneesh tem um incrível poder psíquico – mas não é de maneira alguma um homem espiritual. Portanto isso é totalmente ambivalente – pode ser bom e mau. E é muito difícil separá-los.


MB: E quanto à testemunha em relação à compaixão?

BG: Isso é fundamental, penso eu. Quando se vai além da mente com todas suas divisões entre bom e mau, certo e errado, chega-se à compaixão infinita. Foram ultrapassados todos os limites e agora se pode ver tudo em uma perspectiva muito mais profunda. Acho que é quase o sinal de uma experiência espiritual genuína. Pegue o Budismo – é notável. Tem-se um vasto método de meditação e disciplina, e em seu centro há essa extraordinária compaixão. Normalmente, pode-se reconhecer um mestre genuíno – um mestre Zen ou um iogue hindu – exatamente por isso; quando se vê sua compaixão sabe-se que eles são genuínos. Quando não se vê a compaixão, são altamente suspeitos. Embora haja diferenças. A compaixão budista não é o mesmo que a devoção e o amor hindus, que não é exatamente igual ao ágape cristão. Cada um tem seu caráter distintivo.

MB: O que o senhor vê em relação a dar o testemunho do que testemunhou dentro de si mesmo?

BG: Na índia, estamos muito preocupados com todo o problema de pobreza e sofrimento, e há um sentimento muito forte – especialmente entre os cristãos, mas também entre os hindus – de que uma pessoa genuinamente espiritual deve se preocupar com os pobres e sofredores. Portanto isso se associa à questão da compaixão. Quando você penetra mais profundamente dentro de seu eu interior e descobre o mistério transcendente lá dentro, você se torna mais aberto ao sofrimento das pessoas, aos problemas do mundo. Temos tido uma tradição na Igreja Católica de separar a vida contemplativa da vida ativa. Algumas pessoas são ativas e vão para o mundo; algumas são contemplativas, deixam o mundo e meditam. Acho que é uma divisão artificial. O que realmente se quer é muito difícil. Há dois movimentos diferentes: um é se retirar do mundo em total recolhimento e silêncio; e o outro é ter, ao mesmo tempo, uma abertura horizontalmente. Portanto há um movimento vertical e um movimento horizontal, que têm um ritmo dual, uma polaridade que você tem que descobrir.

MB: Quem são aqueles que exemplificariam isso na tradição cristã?

BG: é bastante comum na tradição cristã, de fato; o próprio Jesus é a melhor de todas as testemunhas. Esquecemos algumas vezes que, enquanto seguia fazendo o bem, Ele também, ao mesmo tempo, estava em comunhão com o Pai. Jesus estava vivendo em comunhão com o Pai, esse testemunho interno, e a partir daí vinha todo o Seu trabalho, todos os Seus ensinamentos. é característico da tradição cristã, mas infelizmente nos últimos dois ou três séculos nos voltamos mais para o lado ativo e não há muitos testemunhos de uma experiência contemplativa realmente profunda.

Mahatma Ghandi
MB: Como o senhor distingue entre a investida missionária e o testemunho autêntico?

BG: Eu não vejo sentido em um tipo de testemunho evangélico que não é um testemunho do espírito. Como o Mahatma Ghandi costumava dizer, "você deve divulgar o Evangelho como uma rosa espalha seu perfume". Algo que vem de seu coração e de sua vida e de todo seu ser interior – aí sim, isso é convincente.

MB: Eu me pergunto sobre o testemunho em relação à auto-realização ou ao êxtase.

BG: A testemunha silenciosa: isso realmente é auto-realização. é encontrar o verdadeiro eu, que é a testemunha por trás do eu ativo. Eu sempre entendo isso no sentido cristão de espírito, da alma de São Paulo; que é a faculdade de Deus em cada ser humano. Há esse ponto do espírito além do corpo, além da alma com todas as suas atividades; existe um ponto do espírito em que estamos abertos para Deus. é o ponto de nossa abertura para o Divino. E esse é o ponto de testemunho e auto-realização. O espírito é o princípio (a origem) do eu: o eu divino manifestando-se no eu humano no ponto do espírito.

MB: E isso seria sinônimo de êxtase?

BG: Bem, êxtase tem dois sentidos, como você sabe. Um é quando você perde a consciência do corpo-alma e somente vivencia o espírito. Eu penso que muito mais normal é um despertar para o espírito, para a presença interior de Deus, enquanto permanecemos completamente conscientes dos níveis físico e psicossomático. Em geral, quando as pessoas falam de êxtase querem dizer uma saída da consciência presente para um estado de transe ou algo parecido. Para mim é importante que a experiência de Deus, do verdadeiro eu, não destrua nem de forma alguma iniba o eu inferior, o organismo psico-físico que é seu meio de experiência e expressão. Você vai além dele (o organismo psico-físico), mas não o rejeita nem nega.

MB: E quanto ao corpo? Qual a sua função no testemunho?

BG: Eu me interessei particularmente por aquele número da revista Parábola, "O Corpo". Sinto que na visão cristã, que compartilho, o corpo tem grande importância. Há uma tendência, certamente em algumas formas de Hinduísmo, de pensar que o propósito dos exercícios espirituais é ir além do corpo. Mas no meu entendimento o ser humano é corpo-alma-espírito e é um todo integrado. Corpo e alma – o corpo é dependente da alma e integrado a ela, e corpo e alma são dependentes do espírito e integrados a ele. O corpo é parte da totalidade do ser humano. E é por isso que a encarnação é muito importante. Deus entra no reino psico-físico, assume-o e não o descarta. E na ressurreição o corpo não é descartado, é assumido na vida com a alma e o espírito.


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