Diz o entrevistador, Marvin Barrett, por ocasião de seu encontro com Bede Griffiths:
"Apesar de
octogenário, ainda viaja por todo o mundo para se encontrar com grupos interessados em explorar
os pontos comuns entre a religião oriental e a ocidental, e sua importância crucial uma para a outra.
Em casa, está em geral trabalhando em algum livro, seis dos quais já foram publicados –
entre eles os clássicos espirituais contemporâneos The Golden String, The Return to the Center e
The Marriage of the East and the West (Templegate Publishers, Springfield, Illinois)".
A tradução dessa entrevista concedida a Marvin Barrett e publicada na revista Parábola
foi revista e resumida por Bete Torii.
Marvin Barrett: O senhor tem uma definição do que significa o testemunho no contexto
religioso?
Padre Bede Griffiths: Na meditação a pessoa tenta acalmar o corpo e os sentidos, acalmar a
mente e tornar-se aquilo que é chamado "a testemunha silenciosa", a testemunha além da
mente. Nós do Ocidente acreditamos que a mente é tudo, mas toda a prática oriental
consiste em ir além da mente, até o ponto da testemunha silenciosa, onde você está
testemunhando a si mesmo, onde se está além do ego, além do self.
A tradição hindu se fundamenta naquilo que o ocidente em grande parte já perdeu: que
há três níveis. Há o nível do corpo e há o nível da mente, que o
mundo ocidental pensa que é o fim. Mas além desses está o espírito.
é o Atman, o pneuma, segundo S. Paulo, uma outra dimensão para onde vamos além
da mente, dos sentidos e dos sentimentos, e onde estamos conscientes da realidade transcendente. E
esse é o objetivo da vida, chegar a isso.
MB: Como o senhor vê o desenvolvimento da capacidade de testemunhar validamente? O que está
envolvido nisso?
BG: O supremo exemplo disso no hinduísmo é o guru que é visto como capaz de
despertar por completo uma pessoa. Mas acho que em quase todos os níveis pode haver
compartilhamento – veja, nós influenciamos verdadeiramente a mente da pessoa com quem
estamos conversando, e alguém que tenha ido além da mente consegue ajudar outros a
irem além da mente.
MB: O guru último é a testemunha dentro de nós.
BG: Sim, mas isso é muito complicado, traiçoeiro. Pode-se atingir um nível bastante
profundo de experiência, mas o ego está sempre lá, por trás. Ele sempre pode
aparecer de novo, e às vezes você pode não reconhecê-lo. Há alguns gurus que
são de fato bastante egoístas. Lembro-me de um guru muito conhecido, que eu respeito,
falando que um outro guru era ego da cabeça aos pés.
MB: E quanto à dependência ou independência do testemunho em relação à
fé?
BG: Eu vejo a fé como um despertar para a transcendência. Na perspectiva cristã, dizemos
que Deus está além da razão, completamente além do mundo criado, e que
é necessário abrir o coração e a mente para a transcendência. Em geral o
transcendente se manifesta por meio de alguma tradição em particular. Isso parece ser onde
as religiões diferem. Se você desperta para a transcendência na tradição budista você a
chama Nirvana, e você entra para o Caminho das Oito Vias, e assim por diante. Se você for hindu você a
denominará Brahma ou Atman e seguirá o caminho da ioga, e se for cristão a
denominará Deus Pai e entrará no caminho de Cristo. Portanto, cada um é um
caminho para o Supremo, tendo seu caráter próprio e único.
MB: O que o senhor vê como propósito e função da vida monástica em
relação ao testemunho?
BG: Esse despertar pode ocorrer sob quaisquer circunstâncias, e ocorre. Mas, para que ele seja alimentado
e cresça, a maioria das pessoas precisa de um tempo de reclusão. E muitos precisam
não só de algum tempo, mas de toda a vida. Um monastério ou um ashram é
um lugar que existe exatamente para permitir que as pessoas despertem e cresçam em sua
consciência da transcendência.
MB: Em um período sensível de seu desenvolvimento.
BG: Sim. E pode ser temporário. No Budismo, particularmente, há o monacato
temporário, e muitos de nós sentem que deveria haver o monacato cristão
temporário. Mas em nossa tradição, em geral é para a vida toda. é
necessário haver centros onde as pessoas possam encontrar essa experiência, e nesse centro
é necessário que haja uma ou duas pessoas, pelo menos, que estejam completamente
comprometidas com ele. O monge beneditino é uma pessoa que está comprometida com
essa busca, a experiência de Deus, e que cria centros onde outros possam encontrar isso.
MB: Com base em sua experiência, obviamente não é fácil estabelecer tal centro.
BG: E atualmente talvez seja mais difícil que nunca, porque a mente racional está assumindo
o comando em todos os lugares. A ciência e a tecnologia fazem avanços incríveis, e as
pessoas se tornam mais e mais absorvidas por eles. Isso está inteiramente no nível da
mente racional, e as pessoas começam a pensar que não há nada além disso.
Portanto, torna-se mais difícil agora. E muitas pessoas acham que aqueles que se retiram da
atividade da vida são pouco equilibrados ou são escapistas. Mas duas coisas estão
acontecendo. Uma é que o antigo sistema da ciência e tecnologia segue em frente, com seus
desenvolvimentos maravilhosos, mas a outra é que houve uma ruptura na ciência, em especial na
física, e uma abertura para níveis mais profundos de consciência.
O recolhimento iluminador
MB: Isso vem acontecendo há algum tempo.
BG: Isso vem acontecendo há algum tempo e sinto que esse movimento é a
esperança para o futuro. Nesse sentido está ficando mais fácil, mas o movimento
principal ainda é em direção ao avanço da tecnologia.
MB: O senhor acha que há uma tradição esotérica e outra exotérica do
testemunho?
BG: Eu em geral não faço essa distinção tanto quanto algumas pessoas fazem.
Particularmente no Cristianismo, sou mais inclinado a pensar que o esotérico existe dentro do
exotérico. Não são dois movimentos separados. Muitas pessoas vêem somente a
superfície da religião, mas sempre há quem consiga ver a profundidade interna dela.
Acho que Agostinho ou São Tomás de Aquino estavam bem no centro da igreja
esotérica e, entretanto, permaneciam com o exotérico.
MB: Sempre há, portanto, acesso...
BG: Sim. Sou cristão porque realmente acredito que dentro das igrejas católicas, não
importa quão exteriores sejam, o Espírito Santo está sempre presente.
MB: E quanto à relação entre a moralidade e o testemunho?
BG: Isso é bem difícil. Mesmo um nível bem alto de experiência espiritual pode ainda
deixar as pessoas sem muito desenvolvimento moral. Na verdade, faço aqui uma
distinção entre o psicológico e o espiritual. Quando se entra no mundo da
meditação, entra-se no mundo psíquico que está além do físico.
Toda a parapsicologia está lá – clarividência, poderes de cura, e assim por diante – e esse
mundo é ao mesmo tempo bom e mau. Você consegue passar além dele, para o espiritual,
que transcende o psíquico e que é propriamente o mundo e reino do testemunho. Mas todo
o vasto mundo psíquico está no meio e as pessoas podem ficar presas nele. E isso pode
ser muito mau. Acho que um homem como Rajneesh tem um incrível poder psíquico – mas
não é de maneira alguma um homem espiritual. Portanto isso é totalmente ambivalente
– pode ser bom e mau. E é muito difícil separá-los.
MB: E quanto à testemunha em relação à compaixão?
BG: Isso é fundamental, penso eu. Quando se vai além da mente com todas suas divisões
entre bom e mau, certo e errado, chega-se à compaixão infinita. Foram ultrapassados todos
os limites e agora se pode ver tudo em uma perspectiva muito mais profunda. Acho que é quase o
sinal de uma experiência espiritual genuína. Pegue o Budismo – é notável. Tem-se
um vasto método de meditação e disciplina, e em seu centro há essa
extraordinária compaixão. Normalmente, pode-se reconhecer um mestre genuíno – um
mestre Zen ou um iogue hindu – exatamente por isso; quando se vê sua compaixão sabe-se que eles
são genuínos. Quando não se vê a compaixão, são altamente suspeitos.
Embora haja diferenças. A compaixão budista não é o mesmo que a
devoção e o amor hindus, que não é exatamente igual ao ágape
cristão. Cada um tem seu caráter distintivo.
MB: O que o senhor vê em relação a dar o testemunho do que testemunhou dentro de si
mesmo?
BG: Na índia, estamos muito preocupados com todo o problema de pobreza e sofrimento, e
há um sentimento muito forte – especialmente entre os cristãos, mas também entre os
hindus – de que uma pessoa genuinamente espiritual deve se preocupar com os pobres e sofredores.
Portanto isso se associa à questão da compaixão. Quando você penetra mais
profundamente dentro de seu eu interior e descobre o mistério transcendente lá dentro, você
se torna mais aberto ao sofrimento das pessoas, aos problemas do mundo. Temos tido uma
tradição na Igreja Católica de separar a vida contemplativa da vida ativa. Algumas
pessoas são ativas e vão para o mundo; algumas são contemplativas, deixam o mundo e
meditam. Acho que é uma divisão artificial. O que realmente se quer é muito
difícil. Há dois movimentos diferentes: um é se retirar do mundo em total
recolhimento e silêncio; e o outro é ter, ao mesmo tempo, uma abertura horizontalmente. Portanto
há um movimento vertical e um movimento horizontal, que têm um ritmo dual, uma polaridade que
você tem que descobrir.
MB: Quem são aqueles que exemplificariam isso na tradição cristã?
BG: é bastante comum na tradição cristã, de fato; o próprio Jesus
é a melhor de todas as testemunhas. Esquecemos algumas vezes que, enquanto seguia fazendo o
bem, Ele também, ao mesmo tempo, estava em comunhão com o Pai. Jesus estava vivendo
em comunhão com o Pai, esse testemunho interno, e a partir daí vinha todo o Seu trabalho,
todos os Seus ensinamentos. é característico da tradição cristã, mas
infelizmente nos últimos dois ou três séculos nos voltamos mais para o lado ativo e
não há muitos testemunhos de uma experiência contemplativa realmente profunda.
Mahatma Ghandi
MB: Como o senhor distingue entre a investida missionária e o testemunho autêntico?
BG: Eu não vejo sentido em um tipo de testemunho evangélico que não é um
testemunho do espírito. Como o Mahatma Ghandi costumava dizer, "você deve divulgar o Evangelho
como uma rosa espalha seu perfume". Algo que vem de seu coração e de sua vida e de todo
seu ser interior – aí sim, isso é convincente.
MB: Eu me pergunto sobre o testemunho em relação à auto-realização ou
ao êxtase.
BG: A testemunha silenciosa: isso realmente é auto-realização. é encontrar o
verdadeiro eu, que é a testemunha por trás do eu ativo. Eu sempre entendo isso no sentido
cristão de espírito, da alma de São Paulo; que é a faculdade de Deus em cada
ser humano. Há esse ponto do espírito além do corpo, além da alma com
todas as suas atividades; existe um ponto do espírito em que estamos abertos para Deus. é
o ponto de nossa abertura para o Divino. E esse é o ponto de testemunho e
auto-realização. O espírito é o princípio (a origem) do eu: o eu divino
manifestando-se no eu humano no ponto do espírito.
MB: E isso seria sinônimo de êxtase?
BG: Bem, êxtase tem dois sentidos, como você sabe. Um é quando você perde a consciência do
corpo-alma e somente vivencia o espírito. Eu penso que muito mais normal é um despertar
para o espírito, para a presença interior de Deus, enquanto permanecemos completamente
conscientes dos níveis físico e psicossomático.
Em geral, quando as pessoas falam de êxtase querem dizer uma saída da consciência presente
para um estado de transe ou algo parecido. Para mim é importante que a experiência de Deus, do
verdadeiro eu, não destrua nem de forma alguma iniba o eu inferior, o organismo psico-físico
que é seu meio de experiência e expressão. Você vai além dele (o organismo
psico-físico), mas não o rejeita nem nega.
MB: E quanto ao corpo? Qual a sua função no testemunho?
BG: Eu me interessei particularmente por aquele número da revista Parábola, "O Corpo".
Sinto que na visão cristã, que compartilho, o corpo tem grande importância. Há uma
tendência, certamente em algumas formas de Hinduísmo, de pensar que o propósito dos
exercícios espirituais é ir além do corpo. Mas no meu entendimento o ser humano
é corpo-alma-espírito e é um todo integrado. Corpo e alma – o corpo é
dependente da alma e integrado a ela, e corpo e alma são dependentes do espírito e
integrados a ele. O corpo é parte da totalidade do ser humano. E é por isso que a
encarnação é muito importante. Deus entra no reino psico-físico, assume-o e
não o descarta. E na ressurreição o corpo não é descartado, é
assumido na vida com a alma e o espírito.
Voltar
|