Recebi um email que contém um anexo intitulado "A
prisão de cada um". Nele, o autor (que é psiquiatra) afirma que não
apenas somos todos prisioneiros, mas também que é absolutamente impossível a
saída de nossas celas, pois...
"a liberdade é uma abstração, e o máximo de liberdade que alguém pode
aspirar é escolher a prisão onde quer viver".
Sua argumentação basicamente é a seguinte:
"Tudo o que lhe dá segurança, ao mesmo tempo o
escraviza. Viver sem laços igualmente pode nos reter. Se nem a estabilidade nem
a instabilidade nos torna livres, escolher o tipo de prisão onde
ficaremos encerrados já é uma vitória; nós é que decidimos quando seremos
capturados e para onde seremos levados. É uma opção consciente".
Ele usa frases de efeito, de alto poder de
convencimento, para justificar sua tese. Coisas como "diga-me qual é a sua tribo
e eu lhe direi qual é a sua clausura".
O texto conclui que, sendo inevitável nosso estado de
escravidão, o melhor que podemos fazer é escolher conscientemente uma prisão
agradável, para nela passarmos nossos dias.
O referido artigo perde a oportunidade de aprofundar
um tema recorrente da humanidade, ao longo dos milênios: a questão de nossa
escravidão psicológica, se realmente isso existe, de que ela é feita.
Ele simplesmente diz que somos todos prisioneiros, que
a prisão é inexpugnável, que não existe liberdade, e, portanto, o que nos
cabe é escolher uma boa e confortável prisão.
Infelizmente, nossa existência não é simples assim.
Para começar, se é verdade que o preço da liberdade é
a eterna vigilância", como declarou Thomas Jefferson ( aludindo à
liberdade política nos Estados Unidos ), podemos dizer então que
o preço do conforto na prisão é o eterno controle.
E quem será o controlador? decerto, o mesmo que
escolheu seu tipo predileto de prisão.
Acontece, porém, que, mesmo dentro da
prisão, nada está sob controle, e as
eternas mutações de todas as coisas transtornam as condições dos prisioneiros,
ao trazer consequências "ruins" de coisas "boas", e reciprocamente.
Ou seja, por mais "agradável" que seja a vida intramuros, não há como manter do
lado de fora o infortúnio, a tristeza, a tensão e a ansiedade.
Muito ao contrário; mesmo dentro de prisões
confortáveis ( "bons" casamentos, relacionamentos, empregos, aposentadorias,
etc. ) ocorre a decepção, a perda, o sofrimento.
Sobre a questão de nossa escravidão mental, vários
grandes vultos da humanidade, como Sócrates, deixaram reflexões tão
importantes, mas tão importantes, que
raramente são divulgadas pelos meios de comunicação, ocupados
que estão em enfeitar as prateleiras das prisões.
No famoso texto que lhe é atribuído, a Alegoria da Caverna de Platão,
Sócrates mostra que, se é verdade que todos os nossos conceitos,
sentimentos e opiniões são realmente formados a partir de um estado de
absoluta escravidão, pelo menos há a possibilidade de que alguns, examinando
essas sombras, possam intuir a existência da Luz, e assim romper com
suas algemas.
Jesus, quando estava sendo crucificado, disse "Pai, perdoai-os, pois não sabem
o que fazem". Aqueles, porém, deviam ter inúmeras razões para fazer o que
faziam.
Estavam atados, exatamente, pelos NÓS de suas razões.
Talvez eles não soubessem mesmo o que estavam fazendo, mas achavam que sabiam.
Sejamos humildes, e permitamos que ao menos uma
pequenina e inocente dúvida penetre em nossa mente, como às vezes um raio de
sol, ao entardecer, se insinua na escuridão das cavernas da Chapada
Diamantina:
NÃO
ESTAREMOS NÓS NA MESMA CONDIÇÃO?
Mas não, de jeito nenhum! Julgamos que nossa formação, nossos padrões e crenças
legitimam nosso comportamento.
Queremos porque queremos ter razões válidas e justas,
em que realmente acreditemos, para justificar nossos atos de preferência,
aquelas que nos tragam segurança, aprovação social, etc.
Não somos muito criativos, pois é exatamente o que
fizeram nossos antecessores em todos os tempos.
Atados pelos NÓS de nossas razões, crenças e
ideologias, bem como de nosso tortuoso mundo emocional, pode muito bem
acontecer que sejamos prisioneiros de toda essa parafernália, sem que ao menos
desconfiar disso.
Curiosamente, porém, nunca nos colocamos na condição de prisioneiros
e ignorantes (não estou falando no sentido técnico, e sim de temas
como amor, liberdade, felicidade, morte, Deus), isto é:
seres
humanos que não sabem
e não sabem
que não sabem!
Mas não é nossa culpa.
A sociedade nos educa para crer que cada um de nós é
um ser dotado de livre-arbítrio, de um "eu" pessoal consciente e
responsável, que deve buscar a felicidade e a liberdade.
Mas, será isso verdade? Vejamos o que Fernando Pessoa disse a respeito:
Nesta vida em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através dessa névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
"Sou somente o lugar onde se sente ou pensa"
quantos de nós têm essa percepção? Ao contrário, do alto de nossa insuspeitada
ignorância, dizemos "eu sou mais eu".
Na verdade, nossa condição real pela vida fica muito
melhor descrita pelos versos do poeta:
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
("Tabacaria", de Fernando Pessoa)
A avançada neurociência dos dias atuais converge
crescentemente para a inexistência um "fantasma dentro da máquina", isto é, de
um sujeito que seja o coordenador central dos inúmeros processos do cérebro,
que ocorrem simultaneamente em múltiplas camadas.
Psicologicamente, porém, julgamos haver um sujeito permanente que, ao
mesmo tempo, pensa os pensamentos e
sente as emoções, e ainda por cima é responsável pelas
escolhas, castigado pelas "más" e recompensado pelas "boas".
Isso costuma trazer contradições insolúveis, e nos
acrescenta em ansiedade e desgosto. E também cria NÓS que represam
energia, criando desequilíbrio no organismo.
Não vemos a nós mesmos como o campo de batalha onde
inúmeros fragmentos (os nossos "eus" de plantão, representando pensamentos e
emoções conflitantes) se alternam no comando.
Mas esse conceito um núcleo pessoal sujeito a
recompensas e castigos é muito conveniente para o controle social e para o
progresso geral das instituições religiosas, como o atesta a sua prosperidade e
poderio.
Mas depois, ficar discutindo se a suposta entidade é livre ou não, o
que deve fazer para ser livre, ou se é melhor, pragmaticamente,
assumir-se de vez como escrava e escolher a prisão mais confortável, são
apenas palavras a embalar nosso sono sem dono.
Tornarmo-nos conscientes de que não sabemos, e de que
camuflamos essa ignorância com mil razões, crenças e opiniões, já é um passo
importante para clarear nossa confusão, pois, como diz um antigo provérbio
chinês,
O homem que não sabe e não sabe que não sabe é um idiota.
O homem que não sabe e sabe que não sabe é um simples.
O homem que sabe e não sabe que sabe está dormindo.
O homem que sabe e sabe que sabe é um sábio.
JC Cavalcanti - 01/03/2006
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