A família reunida aguardava, de copo na mão, o entornar da champagne cujos
brindes haveriam de saudar o Ano Novo, logo após os discursos de praxe.
Lá fora a chuva caía ininterruptamente, desde o dia anterior, e os raios
faiscavam na noite escura.
Enchidas as taças, um tio de cabelos brancos levantou-se e tomou a palavra. Bebeu um pequeno gole, saboreou-o lentamente, estalou a língua, pigarreou e disse:
- Isso é para remover possíveis bloqueios, que persistem mesmo nesta idade.
Alguns riram. O homem era mesmo engraçado, quando queria.
E continuou:
- No ano que se inicia, desejo que o conflito no Iraque aumente de proporções, e
que a paz continue passando distante do Oriente Médio. Que os ódios tribais
aprofundem suas raízes nos corações e os preconceitos racistas continuem firmes
nas mentes de todos eles. Que o tráfico de drogas continue próspero. Que a
bandidagem se organize cada vez mais, penetrando nas malhas do Estado. Que o homem continue
mentindo para si mesmo através de explicações e justificativas. Que o amor do
homem pelo dinheiro e poder aprofunde a desgraça, violência e injustiça em
todas as partes do mundo. Que seu egocentrismo continue a destruir gradativamente o
planeta Terra, como faz há bastante tempo. E que as religiões colaborem com o status quo, acenando
com exemplos edificantes a serem imitados e com castigos e recompensas
pós-vida. Obrigado.
Houve espanto geral. Como dizer uma coisa dessas, ainda mais a título de votos
de Ano Novo? Estaria bêbado o tio? Era notória sua pouca resistência ao álcool.
Felizmente ainda era cedo para a meia-noite, havia tempo para
retificações, comentários conciliadores e votos mais amenos. Uma sobrinha,
externando o sentimento geral, declarou:
- Tio, assim não vale. Pode até ser que o novo ano seja assim mesmo, mas com
certeza não queremos isso. Acho que os votos se destinam a desejar o
oposto do que somos, e também devemos trabalhar na direção contrária aos nossos
defeitos.
- Além disso, disse um convidado, amigo da família, para continuar como
somos, não é necessário desejar, ainda mais em votos de Ano Novo, pois isso
prossegue por si mesmo. Agora, se é de se fazerem tais votos, que sejam de
melhoria geral de nós mesmos e da humanidade como um todo.
- Mesmo que sejam uma forma de auto-enganação, embora simpática? indagou outro
convidado, também de cabelos bem grisalhos - pois no fundo apenas queremos
nos sentir bem, ao menos momentaneamente, com esses votos, não importando
que façam sentido ou não.
Disse o tio que havia discursado:
- é importante que estejamos conscientes do que somos e do que realmente
desejamos. Talvez queiramos apenas nos sentirmos bem, ter um sentimento de
paz, acreditar num amanhã tranquilo. Mas, se desejamos mudanças para nós e
para a humanidade, precisamos saber que o Ano Novo não nos dará automaticamente
uma consciência libertada de seus conteúdos; continuaremos os mesmos, todos
nós, com todas nossas mazelas.
Por instantes fez-se silêncio geral, quebrado apenas pelos trovões que
ribombavam à distância.
- Eu de minha parte me contento em me sentir bem, já é o bastante, disse
uma avó idosa.
- Eu também, disse outro.
- Mas talvez alguns de nós desejem realmente mudar, embora não saibamos como
fazê-lo, disse o convidado de cabelos grisalhos.
- Se houver mudança tem que ser agora, disse o tio. - Nada adianta apontar
ideais distantes como objetivos desejáveis; isso é apenas
um truque para adiar a transformação e continuarmos sempre do mesmo jeito.
- Acabei de perceber uma coisa, respondeu o primeiro - desejar mudanças
para o ano que vem, para o futuro, não nos incomoda muito; o que realmente
"pega" é a mudança agora...
- E o que deveríamos mudar? indagou uma convidada da família.
- De que é feito nosso patrimônio psicológico, adquirido pela experiência
dos anos? Não será de revoltas, ressentimentos e tristezas, ódios e
mágoas, de incessante comparação, competição, ambição e egoísmo, tudo
disfarçado sob inúmeras máscaras onde nos escondemos de nós mesmos? é isso o
que precisa mudar.
De novo, fez-se silêncio na grande sala de visitas onde todos se
aconchegavam.
- E quanto aos votos em que desejamos tudo de bom para nossos parentes e amigos
queridos? Certamente eles continuam válidos, não é? - perguntou uma jovem de
aspecto muito vivaz.
- Claro que sim, respondeu uma das mães presentes.
- Sem dúvida, respondeu o tio. - Mas não devemos esquecer que a vida traz de tudo:
alegria e tristeza, prosperidade e miséria, nascimentos e mortes, realizações e infortúnios... é vão supor que nossos bons votos irão moldar o futuro.
- Entendo, disse a sobrinha que primeiro havia comentado - a vida traz
realmente o bem e o mal, mas não faz sentido, em pleno reveillon, que
desejemos o mal, embora saibamos que ele é inevitável.
- Sendo assim, nossos votos deveriam se restringir ao momento presente, disse a
mãe que havia falado antes. O futuro está além de nosso alcance, mas no
presente temos a chance de ser felizes.
- Então, vamos fazer um poema de Ano Novo, propôs alguém.
E os participantes compuseram uma poesia que expressava seus votos para o
novo ano que chegava...
I - Antes da virada
"Ano Novo logo vai chegar
com muitas canções pelo ar...
Venha pois cantar, você também
agora, e no ano que vem."
"Com carinho e amizade
e também muito perdão
Paciência não pode faltar
prá ninguém se estressar"
II - Depois da virada
"Ano Novo agora já chegou
E nos encontrou a cantar
Pois depois da chuva e do trovão
O sol voltará a brilhar!"
"Viver traz muita alegria,
Mas nos traz tristezas também!
Nossos votos de equilíbrio e paz
Prá viver o mal e o bem."