Além do Bojador  
 podemos extrapolar nossos limites?

Crônica da Semana - JC Cavalcanti - 03/02/2006 

Os navegadores portugueses dos séculos XIV a XVI foram grandes descobridores, não somente de novas rotas de navegação, mas de novos continentes. Isso todos sabemos, mas creio que de modo muito teórico, sem qualquer profundidade, pois não nos colocamos "na pele" desses desbravadores, nem costumamos dar maior atenção ao assunto.

Em que pese o vanguardismo da Escola de Sagres nas artes náuticas, as naus dependiam basicamente dos ventos e das marés, e os capitães se guiavam pela bússola e pela posição das estrelas, medida por instrumentos rudimentares.

Segundo se diz, a esquadra de Pedro Álvares Cabral intentava dirigir-se à Índia, e teria se extraviado demasiadamente da rota prevista, a ponto de ficarem literalmente perdidos no Atlântico.

Agora, imaginem o pasmo desses homens heróicos, que abandonaram seus lares em busca da aventura, ao defrontar-se um mundo virgem, inteiramente novo, intocado pela civilização, após meses de navegação em mares estranhos! 

E também podemos imaginar seu medo, angústia e impotência, ao aproximar-se a "circunferência da terra", o Bojador, ou seja o Trópico do Equador, pois as lendas da época diziam que, avizinhando-se aquela imensa área, enormes monstros marinhos se levantariam do mar para devorar as naus e seus tripulantes.

Não é à toa que o grande Fernando Pessoa, em "Mar Portuguez", narra em vivas cores, emocionadamente, a saga dos nossos ancestrais:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o Céu.

Tudo nesse pequeno poema é primoroso, riquíssimo em metáforas para a nossa vida cotidiana, em geral tão afeita aos pequenos confortos e vantagens, tão acomodatícia, tão simplificada, banalizada e seduzida pela tecnologia, e tão influenciada pela propaganda de cada dia, que nos massacra impiedosamente a liberdade.

Vejam, em especial, a beleza desses últimos versos:

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o Céu.


Teremos nós, também, oculta em nosso imenso jardim psíquico como uma semente a desabrochar, a paixão pelo desconhecido, pela grande aventura da vida? E haverá alguma tarefa monumental a ser realizada, algo comparável aos grandes descobrimentos?

Ou deveremos seguir até morrer em vidas rotineiras, motivados pelos estímulos de prêmios, afagos e elogios, como na fábula do burro e da cenoura, atendendo aos padrões e aos ideais que nos ensinaram a aceitar como verdades incontestes?

Se houver essa tarefa, certamente será uma imensamente desafiadora, não previsível, e sem garantia de qualquer recompensa; tudo nela seria um risco.

Tal como os antigos navegadores, a frágil e pequena caravela de nós mesmos estaria boiando perdida nas calmarias de oceanos misteriosos, ou sacudida por ondas tempestuosas e ameaçada por monstros marinhos.

De fato, assim é a nossa vida — uma aventura no desconhecido, que queremos tornar conhecido, não é verdade? — mas parecemos não perceber a enormidade dessa tarefa, interessados que estamos em toda sorte de distrações para aliviar um pouco a tensão pela preocupação com o amanhã e suas incertezas.

Sim; queremos um mundo previsível, cheio de respostas confortadoras — não é isso o que nos vendem diariamente os meios de comunicação? Queremos rotinas aconchegantes, mesmo que as coisas deterministas sejam intrinsecamente desprovidas de criatividade.

Mas, qual seria essa grande tarefa?

Vejamos desta forma: cada um de nós é um ponto infinitesimal vagando por um planeta minúsculo que gira ao redor do Sol, que é apenas uma das menores, entre as infinitas estrelas do Universo.

Pois bem: querem tarefa maior do que descobrir qual é nosso papel no fenômeno da Criação?  Não nascemos, decerto, somente para conversar trivialidades, ir ao trabalho, cinema, escola, igrejas e supermercados, ou coisas semelhantes. Nem tampouco somente para procriar, aprender um ofício e exercer uma profissão até morrer.

E não se pode perguntar: para quê, então? — pois é exatamente o que queremos descobrir (qual é nosso papel no Universo), e não queremos respostas prontas, pois serão como rotas falsas a nos confundir.

Tampouco há alguém para nos dizer, pois todos também estão perdidos, embora não saibam disso.

E também não se pode perguntar: como? — pois, lembram-se? perdemos o rumo, e estamos em mares desconhecidos, sem rota definida, ou mapa confiável.

É certo que, enquanto podemos, evitamos ao máximo ter que enfrentar a dor, o infortúnio, e queremos a todo custo preservar-nos do sofrimento. Porém, de vez em quando, sem pedir licença, ondas enormes ameaçam nossa suposta segurança física, financeira, ou psicológica.

Tentando retomar a rotina, consideramos esses eventos como exceção, contratempos que nos obrigam simplesmente a fazer algumas correções de curso, incorporar algumas lições em nosso acervo de experiências — e vamos em frente, baseados no desejo, no esforço e na esperança.

Mas, quando as "exceções" se convertem em regra, quando adentramos os domínios do imprevisível, e quando tudo é incerteza, é aí que começa a verdadeira navegação!

Então, os viajantes navegam em águas revoltas, sob um céu tempestuoso, ou caminham sedentos, clamando por uma gota de paz, no deserto de suas vidas. Esse é o momento em que poderemos dizer:

Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o Céu.

O passar do tempo não lhes traz nenhum lenitivo, e eles se vêem caminhando muito além do território onde a alegria e a esperança há tempos já feneceram. São sobreviventes de si mesmos; derrotados em incontáveis batalhas, viram desmoronar as imagens, conceitos e ideais que tinham a seu próprio respeito.

Esses, meus amigos, são os que estão nos domínios da incerteza, do desconhecido, e não o negam; eles já foram devorados por inúmeros tormentos emocionais, e isso foi um bem; no dizer do poeta, estão além do Bojador.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.

Pois talvez precisemos ser devorados por nossas emoções, nossos medos, até aplacar a voracidade dessas forças poderosas; talvez precisemos dar boas vindas aos nossos fantasmas, perder nossas ilusões e desfazer-nos de nossas algemas, para que surja algum grande descobrimento interior. Então, poderemos dizer, sem dúvida:

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Antes, porém, é preciso que nossa vontade própria e nossos recursos fracassem tão completamente que a única coisa que faça sentido seja confiar nossos rumos às estrelas.

Pois é exatamente nosso sentido de força e mérito próprio, ou seja, nosso orgulho,  que nos desvia da rota, e as tempestades são um meio pelo qual o Universo nos dá uma chance de descobrirmos nossa verdadeira natureza.

Crônica da semana - JC Cavalcanti - 03/02/2006

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