Os navegadores portugueses dos séculos
XIV a XVI foram grandes descobridores, não somente de novas rotas de
navegação, mas de novos continentes. Isso todos sabemos, mas creio que de
modo muito teórico, sem qualquer profundidade, pois não nos colocamos "na pele"
desses desbravadores, nem costumamos dar maior atenção ao assunto.
Em que pese o vanguardismo da Escola de
Sagres nas artes náuticas, as naus dependiam basicamente dos ventos e das
marés, e os capitães se guiavam pela bússola e pela posição das estrelas,
medida por instrumentos rudimentares.
Segundo se diz, a esquadra de Pedro Álvares Cabral intentava dirigir-se à
Índia, e teria se extraviado demasiadamente da rota prevista, a ponto de
ficarem literalmente perdidos no Atlântico.
Agora, imaginem o pasmo desses
homens heróicos, que abandonaram seus lares em busca da aventura, ao
defrontar-se um mundo virgem, inteiramente novo, intocado pela civilização,
após meses de navegação em mares estranhos!
E também podemos imaginar seu
medo, angústia e impotência, ao aproximar-se a "circunferência da terra", o
Bojador, ou seja o Trópico do Equador, pois as lendas da época diziam que,
avizinhando-se aquela imensa área, enormes monstros marinhos se
levantariam do mar para devorar as naus e seus tripulantes.
Não é à toa que o grande Fernando Pessoa, em "Mar Portuguez", narra em vivas
cores, emocionadamente, a saga dos nossos ancestrais:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o Céu.
Tudo nesse pequeno poema é primoroso,
riquíssimo em metáforas para a nossa vida cotidiana, em geral tão afeita aos
pequenos confortos e vantagens, tão acomodatícia,
tão simplificada, banalizada e seduzida pela tecnologia, e tão influenciada
pela propaganda de cada dia, que nos massacra impiedosamente a liberdade.
Vejam, em especial, a beleza desses
últimos versos:
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o Céu.
Teremos nós, também, oculta em nosso imenso jardim psíquico como uma semente a
desabrochar, a paixão pelo desconhecido, pela grande aventura da vida? E haverá
alguma tarefa monumental a ser realizada, algo comparável aos grandes
descobrimentos?
Ou deveremos seguir até morrer em vidas
rotineiras, motivados pelos estímulos de prêmios, afagos e elogios, como na
fábula do burro e da cenoura, atendendo aos padrões e aos ideais que nos
ensinaram a aceitar como verdades incontestes?
Se houver essa tarefa,
certamente será uma imensamente desafiadora, não previsível, e sem
garantia de qualquer recompensa; tudo nela seria um risco.
Tal como os antigos
navegadores, a frágil e pequena caravela de nós mesmos estaria boiando perdida
nas calmarias de oceanos misteriosos, ou sacudida por ondas tempestuosas e
ameaçada por monstros marinhos.
De fato, assim é a nossa vida uma aventura no desconhecido, que queremos
tornar conhecido, não é verdade? mas parecemos não perceber a
enormidade dessa tarefa, interessados que estamos em toda sorte de distrações
para aliviar um pouco a tensão pela preocupação com o amanhã e suas
incertezas.
Sim; queremos um mundo previsível, cheio de respostas confortadoras não é
isso o que nos vendem diariamente os meios de comunicação? Queremos
rotinas aconchegantes, mesmo que as coisas deterministas sejam
intrinsecamente desprovidas de criatividade.
Mas, qual seria essa grande tarefa?
Vejamos desta forma: cada um de nós é um ponto infinitesimal vagando por um
planeta minúsculo que gira ao redor do Sol, que é apenas uma das menores, entre
as infinitas estrelas do Universo.
Pois bem: querem tarefa maior do que descobrir qual é nosso papel no fenômeno da
Criação? Não nascemos, decerto, somente para conversar trivialidades, ir
ao trabalho, cinema, escola, igrejas e supermercados, ou coisas semelhantes.
Nem tampouco somente para procriar, aprender um ofício e exercer uma profissão
até morrer.
E não se pode perguntar: para quê, então?
pois é exatamente o que queremos descobrir (qual é nosso papel no Universo), e
não queremos respostas prontas, pois serão como rotas falsas a nos confundir.
Tampouco há alguém para nos dizer, pois todos também estão perdidos, embora
não saibam disso.
E também não se pode perguntar: como?
pois, lembram-se? perdemos o rumo, e estamos em mares desconhecidos,
sem rota definida, ou mapa confiável.
É certo que, enquanto podemos, evitamos ao máximo ter que enfrentar a dor, o
infortúnio, e queremos a todo custo preservar-nos do sofrimento. Porém, de vez
em quando, sem pedir licença, ondas enormes ameaçam nossa suposta segurança
física, financeira, ou psicológica.
Tentando retomar a rotina, consideramos esses eventos como exceção, contratempos
que nos obrigam simplesmente a fazer algumas correções de curso, incorporar
algumas lições em nosso acervo de experiências e vamos em frente,
baseados no desejo, no esforço e na esperança.
Mas, quando as "exceções" se convertem em regra, quando adentramos os domínios
do imprevisível, e quando tudo é incerteza, é aí que começa a verdadeira
navegação!
Então, os viajantes navegam em águas revoltas, sob um céu tempestuoso, ou
caminham sedentos, clamando por uma gota de paz, no deserto de suas vidas. Esse
é o momento em que poderemos dizer:
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o Céu.
O passar do tempo não lhes traz nenhum lenitivo, e eles se vêem
caminhando muito além do território onde a alegria e a esperança há tempos já
feneceram. São sobreviventes de si mesmos; derrotados em incontáveis batalhas,
viram desmoronar as imagens, conceitos e ideais que tinham a seu próprio
respeito.
Esses, meus amigos, são os que estão nos domínios da incerteza, do desconhecido,
e não o negam; eles já foram devorados por inúmeros tormentos emocionais, e
isso foi um bem; no dizer do poeta, estão além do Bojador.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Pois talvez precisemos ser devorados por nossas emoções, nossos medos, até
aplacar a voracidade dessas forças poderosas; talvez precisemos dar boas
vindas aos nossos fantasmas, perder nossas ilusões e desfazer-nos de nossas
algemas, para que surja algum grande descobrimento interior. Então, poderemos
dizer, sem dúvida:
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Antes, porém, é preciso que nossa
vontade própria e nossos recursos fracassem tão completamente que a única coisa
que faça sentido seja confiar nossos rumos às estrelas.
Pois é exatamente nosso sentido de força e mérito próprio,
ou seja, nosso orgulho, que nos desvia da rota, e as tempestades são
um meio pelo qual o Universo nos dá uma chance de descobrirmos nossa verdadeira
natureza.