O AMOR E A MENTE QUE ESTÁ CONSIGO MESMA – Swami Dayananda



Vedanta é um ensinamento sobre a natureza do próprio indivíduo, através do qual a pessoa descobre que o verdadeiro significado da palavra ‘Eu’ é o Ser, cuja natureza é absoluto contentamento e amor, livre de qualquer sentimento de limitação.

Para apreciar a você mesmo nestes termos, é necessário que a sua mente possa estar consigo mesma, possuindo em uma medida relativa, aquilo que deseja descobrir em termos absolutos.

Porque o ‘Eu’ é contentamento absoluto, a sua mente precisa ser relativamente satisfeita, capaz de um certo contentamento em si mesma.

Porque o ‘Eu’ é amor absoluto, você precisa também ser uma pessoa relativamente amorosa, capaz de aceitar pessoas e objetos conforme são. Uma pessoa intratável, sem amor, não irá descobrir o Ser, pois a sua mente estará sempre agitada, e portanto, nunca estará consigo mesma.

Como então você poderia adquirir uma mente que desfrutasse de um relativo contentamento, permanecendo consigo mesma, e portanto, sendo capaz de amar? Será que uma mente que está consigo mesma pode ser obtida através do amor que você tenha por uma outra pessoa? Se o amor que você desenvolve por alguma outra pessoa é um amor mais permanente, tolerante, isto já não significa que a sua mente está tranquila, tolerante? Veremos como o amor que você tenha por uma outra pessoa, por si só, não pode criar uma mente tranquila e tolerante.

Primeiro você precisa ter uma mente tranquila e tolerante, capaz de estar consigo mesma antes que possa facilmente descobrir um amor mais permanente por alguém. Logo, uma mente capaz de estar consigo mesma irá lhe servir de duas formas: ajudando-o a qualificar-se para o ensinamento de Vedanta e capacitando-o a descobrir um amor mais permanente no seu relacionamento com outra pessoa.



O amor por uma outra pessoa é algo que você descobre no seu interior, quando aquela pessoa lhe agrada. Você não pode decidir amar alguém, pois o amor não é uma ação que se execute. Se fosse, quando alguém lhe pedisse “por favor, me ame”, você poderia então decidir amar a pessoa amanhã.

Com referência à ação existe esta tríplice liberdade: fazer, não fazer, ou fazer de outra forma. Mas, com referência ao amor, esta liberdade não existe, pois o amor não depende da nossa vontade. Logo, o amor só pode ser descoberto em você mesmo.

Além disso, um objeto de amor, seja uma pessoa, um animal ou um objeto inanimado, não tem a capacidade inata de evocar em mim esta emoção que chamamos “amor”. Se fosse assim, esse objeto criaria amor em qualquer pessoa e em você mesmo todo o tempo. Mas não é assim que acontece. Para aquela mesma pessoa que você se vê fora de si de tanto amor, você eventualmente diz: “é melhor darmos um tempo”, significando que o seu amor acabou. Amor, na verdade, nada tem a ver com qualquer objeto que você ame, mas está em você, o sujeito. Os seus gostos e aversões particulares é que determinam o quê e quem será objeto do seu amor, da sua raiva e da sua indiferença. Mas a razão pela qual você ama alguém não é devido àquela pessoa, e sim devido a você mesmo; porque ela lhe agrada. Portanto, ao dizer “eu te amo”, você está realmente dizendo “você me agrada neste momento”. é como se você amasse o seu ser satisfeito. Qualquer objeto ou pessoa que evoque em você este ser satisfeito torna-se então objeto do seu amor.

Para que alguém se veja satisfeito através de uma outra pessoa, esta deverá preencher alguns de seus gostos e aversões particulares, que são altamente subjetivos e mudam de um momento para o outro. Em algumas situações você se percebe satisfeito, mas tudo está nas mãos do destino. E, geralmente, em algum momento, aquela pessoa não lhe agrada mais nem você a ela, pois ninguém consegue realmente preencher todos os mutantes gostos e aversões de outra pessoa o tempo todo. Quando o “ser satisfeito” se vai, o objeto de amor torna-se um objeto de indiferença ou mesmo de raiva. Portanto, não será através do amor por uma outra pessoa que a mente irá qualificar-se para estar consigo mesma.

Se o amor que você descobre por uma outra pessoa irá ou não tornar-se um amor mais permanente, é impossível saber. Votos matrimoniais existem justamente porque nós realmente não temos meios para saber se um amor irá ou não perdurar.

Nós, muitas vezes, descumprimos promessas que firmamos, pois estar satisfeito não é fácil e satisfazer uma outra pessoa é igualmente difícil. Quando você se vê satisfeito com alguém e descobre um amor por essa pessoa, você se deixa arrebatar por sua paixão, ignora as limitações da outra pessoa, pois naquele momento elas nada significam para você.

Enquanto elas permanecerem assim, sem maior importância, aquela pessoa parecerá ter algo que lhe agrada e o amor é então muito natural. Ao mesmo tempo, você é uma pessoa com as suas próprias raivas, ressentimentos, mágoas, culpas… que não desaparecerão só porque você está amando.

O amor existe, sim, com referência àquela pessoa, mas com referência ao seu patrão, à sua sogra, ao governo, ao sistema econômico, você é a mesma pessoa zangada de antes da descoberta daquele amor.

Porque você tem diversas coisas lhe irritando, a raiva estará sempre presente em seu coração, ainda que nem sempre expressa. Quando o frescor do amor que você descobriu se vai, sua raiva começa a se infiltrar no relacionamento. é quando você começa a ver as limitações da outra pessoa com referência às suas próprias expectativas.

Se você não é uma pessoa já naturalmente amorosa, que antes de mais nada possua uma mente apta a estar consigo mesma, não será possível descobrir um amor mais permanente em nenhum relacionamento com outra pessoa. Isto é como esperar que apenas o seu nariz esteja saudável, quando todo o sistema está em desarmonia. é necessário lidar com o sistema como um todo. Arranjos feitos na relação não resolverão de fato, a menos que você mude completamente sua própria maneira de ser. Cedo ou tarde, a pessoa zangada dará vazão à sua zanga. Qualquer técnica para melhorar o relacionamento o fará temporáriamente. Para descobrir um amor mais permanente no relacionamento com alguém, você precisa de uma mente apta a estar consigo mesma.

Possuir uma mente capaz de estar consigo mesma envolve a aquisição de certos valores e atitudes e ter clareza quanto à sua importância. Com estes valores à sua disposição, você está garantindo as condições apropriadas para ser capaz de amar.

Acomodar a outra pessoa é um destes valores. Na verdade, a sua raiva é devido à falta de acomodação, pois você espera que todo o mundo se comporte conforme as suas expectativas.

Para que se possa desenvolver um valor pela acomodação das pessoas, um fato precisa ser claramente compreendido: a outra pessoa age de uma forma específica porque é incapaz de agir de outra forma.

“Ele poderia ter feito melhor”, você diz. Se ele pudesse, ele então teria feito. Que direito você tem de exigir que a outra pessoa aja conforme as suas expectativas? Ela não teria então o mesmo direito de esperar de você uma outra maneira de ser? Afinal, se você mudasse, ela não precisaria mudar.

Se você tem o direito de esperar uma mudança da outra pessoa, ela tem também o mesmo direito de esperar que você deixe-a viver como ela é. Na verdade, apenas acomodando as outras pessoas, apenas permitindo-lhes que sejam como são, você poderá obter uma relativa liberdade na sua vida diária.

Se você analisar isso tudo de uma perspectiva mais ampla, todos interferem na vida dos outros. Em geral, você olha para as situações de uma perspectiva mais limitada e vê uma pessoa tomando um grande vulto, com a sua influência parecendo tornar-se forte demais. Na verdade, você nunca está livre, nem da influência de alguma outra pessoa e nem tampouco de todas as forças do universo no que diz respeito ao seu corpo físico. Nem é possível realizar uma ação ou até afirmar algo sem estar, de uma forma ou de outra, afetando alguém. Portanto, ninguém é realmente livre, uma vez que todos nós estamos interrelacionados.


 

Mesmo o Swami não é livre. Quando eu fui ao zoológico daqui, duas pessoas, ao passarem por mim comentaram entre si: “você viu a nova espécie”. Eu tento não incomodar as pessoas, mas é inevitável, até pelas minhas roupas. Eu me visto assim porque em meu país estas são as vestes tradicionais de um renunciante; quando venho aqui, eu quero me apresentar desta mesma forma. Esta minha decisão irá definitivamente afetar alguém. Se eu me perturbo pelos comentários, é somente porque permito que me perturbem.

Então tenho somente a liberdade que me conferem. Entretanto, se eu reverter o processo, concedendo-lhes a liberdade de serem o que são e pensarem o que pensam, só então eu serei livre. Você tem tanta liberdade quanto a que confere aos demais. Eu vejo a mim mesmo como livre, e lhe deixo livre para ter seus problemas. Logo, eu não preciso brigar com você. A minha liberdade somente pode ser equiparada àquela que eu puder lhe conferir para ter uma opinião a meu respeito. Quando alguém vê minhas roupas e pergunta “o que é isto afinal?” Eu posso apenas sorrir e dizer: “Halloween chegou mais cedo este ano”. Não é necessário que eu altere a sua opinião, ainda que ela possa estar incorreta. Eu lhe concedo a liberdade de ser quem ele é. A única liberdade que eu possuo é de não me incomodar com suas opiniões.

Assim, você acerta contas consigo mesmo psicologicamente enquanto uma personalidade, o que nós chamamos yoga sadhana . Você não pode evitar a psicologia, pois precisa se organizar enquanto uma personalidade.

Não é o caso de extinção de vasanas ou impressões, há somente um entendimento de que existem alguns problemas. Olhe para a sua vida pregressa e reconsidere aquelas situações, pessoas e eventos que realmente lhe prejudicaram. O que você vê não são apenas memórias, mas reações esquecidas.

Uma reação não é algo que você faça conscientemente. Conscientemente você não pode ficar com raiva, pois a raiva não é uma ação, ela é uma reação que se apresenta quando você não tem controle sobre a situação.

Estas reações criam um grande impacto sobre você, tornando-se parte da sua psique. A partir de uma individualidade, as reações criam uma personalidade. Elas são, em última instância, falsas e se devem a uma falta de atenção da sua parte. Elas não têm verdadeiras raízes na mente. Em si mesma, a memória não é algo desagradável. O desagradável são as reações penduradas que se tornaram como que reais. Portanto, traga à mente aquelas pessoas e momentos que lhe causaram algum tipo de incômodo ou quem você incomodou e de quem você carrega um certo sentimento de culpa.

No assento de meditação, lembre-se de todas elas e permita-as ser como são. Quando você olha para o céu azul, as estrelas e os pássaros e as montanhas, você não tem do que se queixar; você se vê satisfeito e feliz. Nenhuma destas coisas faz algo para lhe agradar e ainda assim você está feliz, pois não quer que elas sejam diferentes do que são. Você as aceita conforme elas são, e portanto se vê satisfeito. O rio corre por seu próprio caminho. Você não quer que o volume d’água seja maior ou que o seu fluxo vá por uma direção diferente. Você, na verdade, busca estes pontos naturais porque eles não evocam aquela pessoa insatisfeita que você parece ser, zangada, difícil de se agradar. Aquela natureza insatisfeita, exigente em você não aparece. Você é um com a situação, você acomoda o que acontece sem que o mundo precise fazer nada para lhe agradar.

Este é o ponto em que a transformação precisa ocorrer. Veja-se como uma pessoa satisfeita com referência a estas poucas coisas e então traga esta pessoa satisfeita para lidar com todas as situações e pessoas que lhe desagradaram e que você também desagradou em uma ou outra ocasião.

Aceite a si mesmo como você aceita as estrelas, os pássaros e as montanhas. Ore por uma mudança, se você achar que a outra pessoa precisa mudar ou então faça o que puder para ajudá-la a mudar. Mas, antes, acomode-as como são. Só assim você poderá realmente transformar-se totalmente enquanto pessoa. Não importa o quanto de Vedanta você venha a estudar. A menos que você acomode plenamente as outras pessoas, não funcionará com você. Você terá apenas um sentimento de que existe algo oculto, ainda por ser descoberto.

Você deseja mudar os outros para poder ser livre, só que isto nunca funciona. Aceite as outras pessoas totalmente e você então será livre. Só então você descobrirá o amor que é você mesmo.

Extraído de um seminário intitulado “Sobre o amor” com Swami Dayananda em Toronto, 27/07/85. Tradução: Marco Andre.

Texto original em http://www.vidyamandir.org.br/swamiamor.htm

 


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