Fala-se muito que o ego é o grande vilão da psique humana; os mais fundamentalistas
falam até mesmo em derrota e morte do ego, mas pouco se diz sobre a natureza desse estado de consciência.
Na visão psicanalítica (Freud),
trata-se da faixa de consciência que surge desde nossa extrema infância, onde ocorre
a percepção do mundo e onde eclodem os desejos inconscientes do bebê:
desejo de viver, de satisfação das necessidades físicas e psicológicas,
e sobretudo de prazer imediato e incondicional, o que ele chamou de Id (isso).
A interação com o ambiente, sobretudo com os pais,
é também percebida (como tudo mais) nessa faixa de consciência.
Acontece que aí — bem cedo, portanto —
começa a "doutrinação", a "moldagem", isto é, o processo de aprovação e de repressão social; o que pode e o que não pode,
o que é bonito e desejável e o que é feio e repelente: a toda essa influência,
Freud chamou de "superego".
"Algo" no bebê percebe que
que certos tipos de
comportamentos favorecem a realização de certos desejos,
enquanto que outros são reprimidos,
sendo que, para estes últimos, esse "algo" deverá desenvolver estratégias para realizá-los
ou desistir deles (ocasionando o sentimento de frustração).
Essa é, segundo a Psicanálise, a origem do ego — portanto,
um espaço conflituoso desde o início;
com os impulsos instintivos e emocionais do bebê (necessidade de afeto e acolhimento) se chocando
constantemente com as respostas dos pais a suas demandas, satisfazendo-as
(com maior ou menor presteza/grau de satisfação), ou reprimindo-as.
Progressivamente, ocorre a diferenciação das pessoas que cuidam dele
(sobretudo mãe e pai), bem como a percepção de si mesmo como ser separado,
juntamente com o desenvolvimento da consciência verbal
mediante a qual identifica a si mesmo e aos demais.
Mais tarde, com o desenvolvimento físico e mental da criança, adentrando pela puberdade
rumo à vida adulta, o pensamento será amplamente reconhecido e aceito como
autoridade interior, em grande parte oposto aos impulsos internos, sobretudo de natureza sexual, com os quais se acha em permanente conflito.
O ego, dirá Freud, é "um pobre coitado", espremido entre três escravidões:
os desejos insaciáveis do id,
a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior.
Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia.
Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero,
pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo,
será destruído por ele.
Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial.
Estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites)
e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos e internos).
A autoidentidade fundamentada no pensamento e na memória, sem dúvida, é um ganho evolutivo
em relação ao lado emocional e ao desejo de prazer, também presentes nos animais.
Mas o desejo inconsciente de prazer, território, domínio pela força, ajuntamento em tribos continuam presentes nos seres humanos,
de pouco valendo o condicionamento do superego, mediante recompensas e castigos, ao inocular os valores sociais da
cultura, religião, bondade, solidariedade, etc. na consciência de ego (eu)
de forma que este assuma COMO SEUS essas noções e valores e reprima as tendências animais do seu aspecto instintivo.
O grande problema é que não é dada atenção suficiente
à consciência mediante a qual ocorre
a capacidade de perceber e interpretar
(inicialmente, de forma não verbal)
o ambiente externo e as pulsões internas,
gerando o que ele chamou de ego (palavra latina que significa "eu").
Essa consciência, onde ocorre a percepção do mundo,
não é considerada em si mesma; é vista apenas como uma "condição
sine qua non", um meio para um fim;
não se vê nela qualquer relação com a vida nem com a inteligência.
O fato fundamental da natureza, a capacidade de perceber, de estar consciente (de forma não verbal), é, assim, deixado em segundíssimo plano.
Em contrapartida, desenvolve-se sobre essa capacidade o sentido da autoidentidade, com
total aceitação do pensamento como autoridade interior (isto é, aquele que dá as ordens),
consolidando-se assim a noção de ego (eu). Essa aceitação
é a principal faceta do estado de ego como um "eu" racional,
ainda que em permanente conflito e disputando a hegemonia
com as tendências latentes e desejos inconscientes.
Dessa aceitação derivam mil sentimentos, emoções e comportamentos.
Por exemplo, ao querer realizar um prazer proibido, ou uma ação condenável,
já nos vem a voz do superego (passando-se por ser nossa) desaconselhando e reprimindo nossa intenção.
Daí segue a revolta, a frustração, o ímpeto ainda maior de realizar o desejo,
e toda a subsequente cadeia de emoções associadas aos eventos seguintes.
Agora, imaginem a quantidade de conteúdos que internalizamos desde o tempo de bebês!
Todos os modelos de conduta, moral, costumes, regras, condenações, ameaças,
toda a cultura da raça, religião, grupos sociais — tudo está guardado em nós,
muitas vezes em conflito com os impulsos internos de prazer de diversos tipos, sobretudo de natureza sexual.
Desejo e culpa, ousadia e medo, crueldade e bondade, vingança e perdão,
selvageria e gentileza — tudo isso se mistura e pronto: está criado nosso eu.
Criado em cima de onde?
da consciência primeva com a qual surge a vida,
fonte da percepção anterior ao verbo, espaço onde ocorre toda a manifestação,
e que é completamente esquecido e ignorado, como se não fosse a base de tudo.
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